em

Projetos de lei ameaçam governança multissetorial da Internet no Brasil

Em debate no Congresso, propostas legislativas reacendem alerta sobre interferência política e fragilização da autonomia da rede no país

Duas propostas em tramitação no Congresso Nacional têm despertado preocupação entre especialistas e organizações da sociedade civil ligadas à governança da Internet no Brasil. Trata-se do Projeto de Lei nº 2.768/2022, do senador Eduardo Gomes (PL-TO), e do Projeto de Lei nº 4.557/2024, de autoria do deputado federal Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ). Ambos têm em comum a intenção de alterar significativamente a estrutura de governança da Internet no país, atualmente coordenada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

Embora distintos em abordagem, os dois projetos convergem em pontos que colocam em risco a continuidade do modelo multissetorial, considerado uma referência internacional de equilíbrio entre os interesses do governo, do setor privado, da comunidade científica e da sociedade civil.

O que propõem os projetos

O PL 2.768/2022 propõe, entre outras medidas, o fim das eleições diretas para representantes da sociedade civil no CGI.br, além de instituir mandatos fixos e remunerados. A justificativa alegada seria tornar a composição do Comitê mais estável e profissionalizada. Na prática, entretanto, a proposta reduz a participação social no órgão e aumenta o controle político sobre sua atuação.

Já o PL 4.557/2024 vai ainda mais longe. A proposta visa subordinar o CGI.br e o NIC.br à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), transformando a atual estrutura em um órgão regulado pela agência federal. Caso aprovado, o projeto extinguiria a autonomia do Comitê e colocaria a gestão de recursos críticos da Internet — como domínios “.br”, endereços IP e pontos de troca de tráfego — sob autoridade direta do governo federal.

O que é o CGI.br e por que ele importa

Criado em 1995 e formalizado pelo Decreto nº 4.829/2003, o CGI.br é um organismo único no mundo, composto por 21 membros de diferentes setores. O modelo adotado no Brasil busca representar a pluralidade de interesses envolvidos na operação e evolução da Internet, evitando o monopólio decisório por parte de qualquer setor.

Além de coordenar o uso de nomes e números na Internet no país, o Comitê define diretrizes estratégicas, elabora estudos, propõe normas técnicas e atua em temas sensíveis como segurança cibernética, inclusão digital, privacidade e liberdade de expressão. Seu braço executivo, o NIC.br, é responsável por operações técnicas que garantem a estabilidade da rede brasileira.

(Créditos: Freepik)
(Créditos: Freepik)

O que está em jogo

Os defensores do modelo atual argumentam que os projetos colocam em risco a independência técnica e a legitimidade democrática da governança da Internet no país. Subordinar o CGI.br à Anatel significaria fundir duas esferas distintas: a regulação da infraestrutura física (telecomunicações) com a gestão da camada lógica da Internet (protocolo, domínios, governança) — algo que contraria práticas consolidadas internacionalmente.

Órgãos como a ICANN, a IANA e a IETF, que regulam globalmente os nomes, números e protocolos da Internet, operam justamente de forma separada das agências reguladoras de telecomunicações. A mistura entre essas esferas pode resultar em centralização de poder, aumento da burocracia, risco de interferência política e perda de agilidade e confiança na gestão da Internet brasileira.

Necessidade de debate qualificado

As notas públicas recentes do CGI.br evidenciam não apenas a surpresa com a tramitação dos projetos — ambos apresentados sem consulta prévia ao Comitê —, mas também um apelo por diálogo. O órgão reitera sua disposição em colaborar com o aprimoramento de políticas públicas para a Internet, mas ressalta que mudanças estruturais profundas precisam ser amplamente debatidas com a sociedade.

Modificar a governança da Internet exige mais do que boas intenções. Requer transparência, participação social e responsabilidade técnica. Qualquer tentativa de centralização, ainda que sob justificativas administrativas ou de eficiência, pode fragilizar o ecossistema digital construído no Brasil ao longo de três décadas — um dos mais respeitados do mundo.

Conclusão

A modernização da governança da Internet é desejável, mas não pode ser feita à custa da autonomia, diversidade e abertura que caracterizam o CGI.br. Os projetos em curso demandam um debate público sério, que envolva os múltiplos setores interessados e leve em conta o legado e os desafios de um ambiente digital que, por definição, deve ser livre, estável e participativo.

Adamy Gianinni

Jornalista de formação, estrategista digital por vocação, gestor público por propósito. 💡🖋️ Nas horas vagas, escritor sonhador e explorador do universo tech. Porque onde há conhecimento, há caminho. 🦉

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

(Créditos: Freepik)

Gestão pública não é favor, é obrigação – e cabe à imprensa reconhecer, comparar e fiscalizar